Motta e uma crise que há meses se desenha
Domingo, 14 de Dezembro de 2025    08h02

Motta e uma crise que há meses se desenha

Sessão que aprovou o PL da Dosimetria — e na qual a imprensa foi impedida de cobrir o protesto do deputado Glauber Braga, arrancado à força do plenário — é considerada nos bastidores da Câmara o ápice de uma presidência que acumula desgastes

Fonte: Vanilson Oliveira e Fabio Grecchi/CB
Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados
Levantamento nas redes sociais, feito dias 9 e 10 de dezembro, mostra que a maioria das menções ao presidente da Câmara é de críticas a ele

 

Desde que assumiu o cargo, em 1º de fevereiro, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), não tinha passado por um período de desgaste tão grande quantro o atual. Entreveros institucionais, controvérsias legislativas e episódios que extrapolaram o plenário o expuseram, levando a ser criticado, explicitamente ou não, por governistas e oposicionistas. Monitoramentos digitais realizados nas últimas semanas mostram que ele figura entre os nomes mais criticados do Congresso nas redes sociais. A mais recente pesquisa realizada pela agência de acompanhamento e marketing digital Ativaweb, em 9 e 10 de dezembro, aponta que 72,8% das referências a Motta nas plataformas foram negativas.

O estudo identificou 7.345.109 menções relacionadas, sobretudo, à sessão de votação do Projeto de Lei da Dosimetria, marcada por tumultos, uso de força policial contra o deputado Glauber Braga (PSol-RJ), truculência e retirada de jornalistas do plenário da Câmara e interrupção do sinal da tevê institucional. Pelo levantamento, de cada 10 manifestações sobre aquele dia, somente uma não era crítica a Motta.

O desgaste, porém, não se limita aos episódios da semana passada. A condução da pauta legislativa neste ano vinha sendo alvo de questionamentos. Tal como a "PEC da Blindagem", classificada, segundo setores da Casa, como "sindical" — ou seja, que interessavam apenas a um grupo de parlamentares. A proposta de emenda à Constituição que ampliava ainda mais as garantias aos congressistas contra investigações da Polícia Federal foi criticada até mesmo pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), que à época disse que a matéria não seria aprovada na Casa. À rejeição, somaram-se as manifestações de 21 de setembro, em várias cidades do país, que serviram para acelerar o sepultamento do texto.

Na sequência, nova polêmica envolvendo Motta, ainda por causa da PEC. Em meados de outubro, ele acionou judicialmente o Sindicato dos Trabalhadores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica da Paraíba (Sintef-PB) por ter espalhado outodoors por João Pessoa, reduto eleitoral do parlamentar, com fotos do presidente da Câmara acompanhadas das frases como: "Eles votaram sim para proteger políticos que cometeram crimes" e "O povo não vai esquecer isso". Na queixa-crime contra o dirigente sindical José de Araújo Pereira, na 4ª Vara Federal da Paraíba, o deputado exigiu a retirada da propaganda.

Desconfiança

Mas mesmo antes da sessão de quarta-feira, que aprovou o PL da Dosimetria, Motta era visto com desconfiança pelo Palácio do Planalto. Apesar de ter recebido a segunda maior votação para uma presidência da Câmara — 444 votos favoráveis, ficando atrás apenas de seu padrinho político, Arthur Lira (PP-AL), que recebeu 464 votos, em 2023 —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou, dias antes do pleito, dúvidas sobre a experiência do deputado para ocupar um cargo de tal magnitude. Chegou a expressar tal receio em conversas com a então presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PT-PR), e com o líder da bancada na Câmara à época, Odair Cunha (PT-MG). Mesmo assim, Motta foi eleito com um arco de alianças da esquerda à direita, incluindo os antagônicos PT e PL.

A desconfiança sobre o deputado começou a se consolidar em junho, quando pautou o Projeto de Decreto Legislativo para sustar o aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) elaborado pela equipe econômica do ministro Fernando Haddad (Fazenda). O governo denunciou publicamente a quebra de acordo, pois negociava com ele uma alternativa com menor impacto fiscal. Já o PT viu o gesto como "sabotagem" e tentativa de enfraquecer Lula politicamente.

O diálogo entre Motta e a representação do governo tornou-se ainda mais difícil quando, em novembro, ele e o líder do PT, Lindbergh Farias (RJ), romperam publicamente devido à escolha do deputado Guilherme Derrite (PP-SP), ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, para relatar o PL Antifacção. O petista criticou a postura do presidente da Câmara, classificando suas decisões como "imaturas" e acusando-o de atuar "na surdina e erraticamente" na condução da pauta da Câmara. Motta rebateu acusando o deputado de agir para enfraquecer sua autoridade na presidência.

A sessão do PL da Dosimetria — no qual Glauber Braga foi retirado à força da cadeira do presidente, que ocupara em protesto contra a possível cassação do mandato; a atuação da imprensa foi cerceada e a TV Câmara tirada do ar — potencializou o desgaste de Motta. Pelo levantamento da Ativaweb, cerca de 70% das menções classificaram a aprovação do projeto de lei como "retrocesso", "golpe jurídico" ou "anistia indireta".

A pesquisa aponta, ainda, que Motta deixou de ser percebido como gestor de crise para tornar-se a própria crise. Nos bastidores da Câmara, passou a ser visto — inclusive por deputados do Centrão, ao qual pertence — como alguém que toma decisões autoritárias para reafirmar a liderança. O diálogo com os governistas permanece difícil, tanto que na sessão do PL da Dosimetria fustigou o PT ao acusar o partido de votar contra a Constituição de 1988 — o que indignou a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), ex-constituinte, que foi à tribuna rebatê-lo e esclarecer que ela e a bancada do PT à época assinaram o texto promulgado em 5 de outubro de 1988.

Conflitos

Para cientistas políticos ouvidos pelo Correio, os eventos em torno de Motta expõem fragilidades na condução da Câmara. Para o cientista político Leonardo Paz Neves, analista de inteligência qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional (NPII) da Fundação Getulio Vargas (FGV), a sessão da quarta-feira passada é resultado de uma sequência de conflitos institucionais. Conforme avalia, os Três Poderes têm extrapolado seus limites constitucionais, o que agrava o ambiente institucional.

"Os poderes no Brasil, basicamente, estão com dificuldades de se comportar dentro dos seus espaços", observou.

Em relação a Motta, Leonardo não enxerga que ele tenha "uma base sólida própria, como o Arthur Lira (que o antecedeu e de quem é afilhado político) tinha, por exemplo". "Ele tenta apoiar um lado, apoiar outro, um pouco para o governo, um pouco para o PL, oposição, para tentar se equilibrar. Só que acaba cedendo errado nos dois lados e deixando os dois insatisfeitos", avalia.

O cientista político Pedro Hermílio Villa Boas Castelo Branco, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), considera que o custo institucional da condução de Motta recai sobre a própria Câmara. "O presidente conseguiu desagradar todas as lideranças porque não construiu acordos prévios, nem combinou o rito das pautas. Quem sai perdendo é a democracia, o equilíbrio institucional e a credibilidade do Parlamento", adverte.

O inferno astral de Motta, porém, não se dissipará esta semana. Ele pretendia fechar o ano decidindo o futuro dos deputados Eduardo Bolsonaro (SP) e Alexandre Ramagem (RJ), ambos do PL e foragidos nos Estados Unidos. Mas, com a determinação do STF de cassar o mandato da deputada Carla Zambelli (PL-SP) — mantido pelo plenário da Câmara na sessão seguinte àquela que aprovou o PL da Dosimetria —, a Casa se dividiu em dois grupos de pressão sobre o presidente. Um, dos bolsonaristas e integrantes do Centrão, defensores da ideia de dar uma resposta à Corte por interferir em uma questão do Legislativo. Outro, de que Motta não deveria levar o caso dos dois parlamentares à pauta para evitar o aprofundamento da crise com o Supremo.

O Correio manteve contato com a assessoria de Hugo Motta e cedeu espaço para que fizesse uma avaliação sobre sua trajetória na Presidência da Câmara. Mas, até o fechamento desta edição, não recebeu a resposta solicitada.

Manifestações

Motta ficará novamente em evidência hoje, quando uma série de protestos pelo país vai colocá-lo como principal patrocinador do PL da Dosimetria, que pode reduzir as penas do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros condenados pela tentativa de golpe de estado depois das eleições de 2022. Desde a tumultuada sessão da quarta-feira já circulava a hashtag #consgressoinimigodopovo pelas redes sociais, o que levou o PT e as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo a fazer nova convocação para tentar barrar o avanço do projeto de lei.

As mobilizações estão sendo articuladas por artistas, parlamentares e influenciadores ligados à esquerda. As convocações, divulgadas nas redes sociais do portal de notícias Mídia Ninja e do 342 Artes — grupo ligado à produtora Paula Lavigne, mulher do cantor e compositor Caetano Veloso —, defendem a necessidade de "devolver o Congresso ao povo".

A manifestação no Rio de Janeiro foi batizada de "Ato musical 2: o retorno", em referência à mobilização realizada em setembro contra a PEC da Blindagem e a tentativa de anistia a condenados pela tentativa de golpe de Estado. Na ocasião, houve atos em várias cidades, com maior concentração de público na capital fluminense e em São Paulo

O PL da Dosimetria, que está no Senado, será relatado pelo bolsonarista Esperidião Amin (PP-SC), que, ao receber o texto do relator na Câmara, Paulinho da Força (Solidariedade-SC), afirmou que pode incluir a discussão da anistia aos golpistas. O governo tentará fazer com que o substitutivo seja rejeitado já na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), presididida pelo governista Otto Alencar (PSD-BA). Mas, caso não consiga, Lula já avisou a interlocutores que vetará a matéria integralmente.

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