O salmista exultante diante da grandeza de Deus e de seus maravilhosos feitos, canta: “Quão grandes (gadal), SENHOR, são as tuas obras! Os teus pensamentos (machashabah) (desígnios,[1] intentos) que profundos!” (Sl 92.5).[2]
Os seus desígnios, por serem verdadeiros e provenientes do Deus santo, justo e soberano, são inumeráveis e eternos: “O conselho do SENHOR dura para sempre; os desígnios (machashabah) do seu coração, por todas as gerações” (Sl 33.11).
Aqui já nos deparamos com algo grandioso demais para nós. Como humanos que somos, pensamos sempre em termos de causa e efeito e, dentro da categoria tempo e espaço repletos de circunstâncias temporais, geográficas, culturais, pessoais, sociais, entre outras. As nossas categorias e instrumentos empíricos são necessários porém, temporais e efêmeros.
Antes de prosseguir, assentemos um ponto: Qualquer concepção fora dessas dimensões (causa-efeito e tempo-espaço) seria impossível ao homem por si só, a menos que o Deus transcendente e pessoal se revele, apresentando uma dimensão do além e depois nos capacitasse a percebê-la por graça. Desse modo, sem essa compreensão não seria possível falar de qualquer aspecto metafísico ou imaterial.
Portanto, foi dentro dessas categorias tão importantes para nós – concedidas por Deus −, que Ele se revelou. Ele criou o tempo, a matéria e o espaço dentro de uma coligação temporal e multidependente, todavia, tudo preservado pelo seu poder. A fim de se comunicar conosco, Deus age e fala dentro do tempo e do espaço. Ele se dá a conhecer também nos eventos da história onde desenvolve o seu propósito glorioso.
As Escrituras se constituem em grande parte em uma narrativa inspirada dos efeitos decorrentes da obediência e desobediência do povo Deus. A história vivencia a doutrina, a ilustrando em suas narrativas. Não podemos deixar de perceber que, escrituristicamente, o Senhor da história será, no tempo determinado por Ele mesmo, o juiz absoluto da história.
Os propósitos de Deus são eternos (Ef 3.11). O seu decreto é eterno. Deus não está circunscrito ao tempo, à aprendizagem e à “maturação das ideias”. Deus é o Senhor da eternidade, do tempo e das circunstâncias. O tempo é onde Deus revela o seu propósito eterno.[3] Na revelação de Deus, temos aos nossos olhos, o encontro do tempo com o eterno, sem que o Deus eterno e fiel, jamais deixe o tempo, onde Ele age e cuida de nós.
Salmo 1Por exemplo, o Salmo 1 − que serve como prefácio ao livro dos Salmos[4] − apresenta, de forma clara e poética, os efeitos da obediência à Lei de Deus e as consequências de trilhar um caminho autônomo, indiferente ao Senhor e aos seus preceitos.
O salmista inicia o Salmo falando sobre o homem bem-aventurado, estabelecendo uma distinção entre os “piedosos” e “pecadores”. “O primeiro salmo encontra-se no pórtico da coleção dos salmos como um guia que em linhas claras indica a direção da vida”, resume Weiser (1893-1978).[5]
Ele traça um contraste profundo entre o justo, que encontra prazer na Lei do Senhor e nela medita dia e noite, e o ímpio, que rejeita essa orientação divina. Enquanto o justo é comparado a uma árvore plantada junto a ribeiros de águas, firme, frutífera e próspera, o ímpio é descrito como palha levada pelo vento, instável e sem direção. O salmo conclui com uma afirmação contundente: o Senhor conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá.
Temos aqui, portanto, uma reflexão sobre as escolhas humanas e as suas consequências. Ou, positivamente: “O Livro dos Salmos é um manual de instruções para viver uma vida verdadeiramente feliz”, escreve Futato.[6]
Os homens buscam a felicidade por meio de seus expedientes terrenos ou mesmo místico-transcendentes, contudo, sempre partindo daqui de baixo. Deus, sem ignorar esse justo desejo humano − criado por Ele mesmo mas, deturpado com o pecado −, propõe em sua Palavra um outro ponto de partida. A sua origem está em cima; o caminho começa pelo eterno passando pelo tempo. Os problemas podem estar fenomenologicamente aqui embaixo, mas, a solução em essência, sempre procede de cima.
Deus conhece os anseios do nosso coração, discerne o que é melhor para nós e, com graça, nos revela o caminho que conduz àquilo que Ele preparou. A felicidade, em Sua perspectiva, não é concedida de modo automático, mas proposta como fruto da obediência aos seus preceitos.[7] O momento decisivo — o divisor de águas — sempre se delineia por linha limítrofe. Ainda que as consequências não se manifestem de imediato, elas virão, inevitavelmente.[8]
O salmista declara, no Salmo 33.11, que os desígnios do Senhor permanecem para sempre. Essa afirmação nos lembra que, por mais que enxerguemos apenas fragmentos da realidade, jamais esgotamos os mistérios do governo e dos propósitos divinos. Diante disso, é comum que nos angustiemos ao interpretar o silêncio de Deus como passividade, indiferença ou demora. Muitas vezes, projetamos um desfecho que, segundo nossa lógica − por vezes pretensamente bem estruturada, mas limitada − julgamos ser o melhor. E então pensamos, questionamos, inquietamo-nos.
A soberania de Deus na utilização dos meiosNão foi justamente isso que enfrentou o profeta Habacuque?
Deus é soberano na utilização dos meios por Ele mesmo estabelecidos. De forma sábia, santa e soberana, o Senhor usa os instrumentos que quer e segue o caminho que lhe apraz. No livro de Habacuque, vemos que Ele usou os caldeus para disciplinar a Judá (Hc 1.12/Is 10.5-6). Deus é senhor dos meios e dos fins!
Os caldeus, sem dúvida, atribuíam suas conquistas aos próprios feitos grandiosos (Hc 1.11,15,16). Ignoravam, porém, que mesmo em sua maldade voluntária e deliberada, operava a mão soberana de Deus, conduzindo a história ao fim que Ele havia determinado. Os caminhos do Senhor, muitas vezes, desafiam nossa compreensão − são altos demais para a razão humana. E esta, em nome de uma racionalidade autônoma e pretensamente suficiente, empenha-se em construir explicações plausíveis para a ação divina, tentando decifrar o insondável com ferramentas limitadas e especulativas.
Pois eis que suscito os caldeus, nação amarga e impetuosa, que marcham pela largura da terra, para apoderar-se de moradas que não são suas. (Hc 1.6).
Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. (Hc 1.12).
Os caminhos de Deus são eternos. (Hc 3.6).
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR. (Is 55.8).
Essência e existênciaDeus é. Nele, essência e existência se fundem de modo absoluto e inseparável.[9] Somente em Deus encontramos uma identidade plena, onde tudo é essência − sem sombra de variação ou acidente. Sua essência é infinita e insondável (Sl 145.3/Jó 11.7-9), transcendente a qualquer elemento externo. Ele é, eternamente, por Si mesmo.
Jamais houve, nem haverá, em Deus qualquer dicotomia entre o ser e o existir. Como “causa não causada” (Sl 94.9),[10] o Ser sem precedente, nada o antecede, nada lhe acrescenta. Tudo procede dele, mas nele nada é derivado. O Senhor (Yehovah) não se torna. Ele é. Eternamente é o que é, pelo seu próprio poder. Por isso, Ele será o que será, porque é, desde sempre, o que foi: o Deus absoluto.
Executa seu plano soberano não por reação, mas por determinação eterna. Ele é o que será, assim como é o que foi (Ex 3.14; Jó 36.22-23; 41.11; Is 40.13-14; Rm 11.33-36; 1Co 2.16).
A Realidade pertence a DeusPortanto, é evidente que a chamada realidade — as pessoas, as coisas e os eventos — não atribuem sentido a Deus. Pelo contrário, é Deus quem confere sentido a toda a existência. Ele é o fundamento, o propósito e o destino de todas as coisas. Tudo converge para Ele, como afirma o apóstolo Paulo: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.36).
A realidade pertence a Deus, quem a criou, e lhe confere sentido. Quando, então nos referimos ao conhecimento que podemos ter do próprio Deus, do seu caráter e majestade, temos de reafirmar a verdade bíblica de que esse conhecimento provém do próprio Deus.
Deus se revela de modo realPortanto, Deus só pode ser conhecido por Ele mesmo. Por isso a necessidade de revelação para que possamos conhecê-lo, e nos relacionarmos com Ele. Deus em sua integridade se revela verdadeiramente como é em sua natureza essencial, ainda que não conheçamos a essência de Deus.[11] Porém, nenhuma de suas perfeições esgota a totalidade de seu ser. Este conhecimento resultante da graça é único, singular e pessoal.[12]
A eternidade, a história e as circunstâncias nada acrescentam a Deus que, como ser absolutamente simples e necessário, é completo[13] e, por isso mesmo, perfeito. A partir da compreensão dessa condição absoluta, necessária e eterna, é que toda a ontologia, epistemologia, teologia e ética tornam-se possíveis sem cairmos em relativismos ou subjetivismos absolutos.
As pessoas e as coisas existem. Como criação do Deus absoluto, toda a natureza luta contra a sua extinção já que é criatura e organicamente − e no ser humano, também intelectualmente −, não se “conforma” com os limites do aqui e agora. O seu existir, tem em si o senso, ainda que longínquo do absoluto que permanece como resquício da Criação. É um senso de autopreservação que lhe é inerente.[14]
Somos criaturas finitas. Perecemos, pois não possuímos a imortalidade — atributo exclusivo de Deus, conforme afirma a Escritura: “o único que possui a imortalidade” (1Tm 6.16). Assim, a nossa permanência não é inerente, mas nos é comunicada graciosamente por Aquele que é eterno em essência. É somente por estarmos unidos ao Deus eterno que podemos participar, ainda que de forma derivada e dependente, daquilo que transcende o tempo e a morte.
Mas, como indicamos, temos em nós o aspirar pela eternidade que não nos permite satisfazer com o que é terreno e, por isso passageiro (Ec 3.11). O transcender-se marca sempre a arte e a literatura em toda cultura.[15] No tempo, categorizamos o nosso anseio pelo eterno: “Caminhamos por essa terra, fazendo o que podemos para torná-la um lugar melhor e, ao mesmo tempo, sabendo que pertencemos a outro país. Lar é onde o coração está; e nossos corações anseiam por estar com Deus”, comenta McGrath.[16]
O “existir de Deus” é uma categoria divina comunicativa acomodatícia à fragilidade e limitação de compreensão já que pensamos sempre com categorias delimitadas pela transitoriedade do existir. Falar do existir de Deus é por si só uma categorização humana e, por isso mesmo, com a permissão de Deus, acomodatícia e restritiva.[17]
Conhecemos a Deus porque Ele se revela. O nosso conhecimento é limitado, porém, pode ser real e verdadeiro.[18] A criação do nada pressupõe a existência de um Deus soberanamente livre e autopoderoso que se basta eternamente a si mesmo.[19] E mais, Ele não se confunde com a matéria e tem deliberação e poder próprio para trazer a existência o que não existe (Gn 1.1; Rm 4.17).
Deus existe por si mesmo, não depende de nada fora dele (Ex 3.14/Ap 1.4). Ele é a causa eficiente de tudo o que existe (Is 44.24/Jo 1.1-3).[20] Deus antecede à criação. Permanece para sempre e não muda.
Deus revelou-se como “Eu sou o que sou,” destacando sua natureza eterna, não apenas um atributo. Essa expressão indica que Deus possui existência por sua própria natureza, sem origem em outro ser. Filosoficamente, isso se refere à autoexistência de Deus, contrastando com tudo que existe, já que tudo o mais fora dele, deriva sua existência de outro ser. Deus é o próprio Ser, sem necessidade de atualização.
Assim comenta Agostinho (354-430):
Outras substâncias ou essências admitem acidentes, causas de pequenas ou grandes mudanças. Deus, porém, não é susceptível de acidentes, e por isso, nele existe unicamente uma substância ou essência imutável. A Deus somente compete verdadeira e infinitamente o ser em si mesmo, pelo qual designamos o seu esse, isto é, a sua essência. Tudo o que muda não conserva o ser em si mesmo e o que pode mudar, mesmo que não mude, pode ser o que antes não tinha sido. Assim, somente ao que não muda e não pode de forma alguma mudar, pode-se afirmar, sem escrúpulos, que verdadeiramente é o Ser.[21]
O poder de Deus é soberanamente livre. Deus é soberano em si mesmo. A onipotência faz parte da sua essência. Por isso mesmo, para Ele não há impossíveis. Apesar de qualquer oposição, Ele executa o seu plano.[22]
Comentando o Sl 33.11, Barnes (1798-1870) faz uma descrição das incertezas humanas em todos os níveis, enfatizando, de modo contratante, com o poder absoluto de Deus:
Não pode existir nenhum conselho ou nenhuma vontade superior capaz de mudá-lo, ao contrário do que sucede com os planos dos homens; e nenhum propósito dos seres que lhe são inferiores – anjos, homens e demônios – pode afetar, derrotar ou modificar os seus planos eternos. Nenhuma mudança das condições humanas pode obstruir seus planos; nenhuma oposição pode derrotá-los, nenhum progresso pode superá-los ou substituí-los (…) As coisas que determinou, ou que tem intenção de realizar, serão realizadas. (…) Os planos de Deus não sobre mudança pela passagem de uma geração a outra, e assim sucessivamente; nem por novas dinastias de reis, nem pelas revoluções que pode ocorrer em nações e impérios.[23]
A relação entre a fé num Deus santo e justo e a aparente vitória do malO livro do profeta Habacuque reflete o conflito entre a fé do profeta e a amarga experiência vivida. Como Deus pode permitir isso? Esta é a questão do profeta. Confesso, que por vezes, é a nossa também.
Ele objetiva mostrar que mesmo que Deus tivesse usado uma nação pagã para disciplinar o seu povo, mais tarde, Ele mesmo destruiria os caldeus devido a sua idolatria e extrema perversidade,[24] resultante de sua própria deliberação.
Ao entender que Deus disciplina por amor (Hb 12.6), aprendemos a não interpretar dificuldades como rejeição, mas como expressão de cuidado divino.
Portanto, não devemos nos precipitar. A aparente demora de Deus em nos atender visa nos estimular à prática perseverante da oração e a confiança em suas promessas.
Tempo, espaço e circunstânciasTempo e espaço determinam muitas de nossas prioridades conforme as circunstâncias. Em boa parte das vezes, tais circunstâncias são elaboradas pela mistura de ambos os elementos conforme a nossa fórmula caseira de relacionar tempo e espaço à nossa pressa e gosto. Aliás, todas essas questões se embricam em uma miscelânea da qual não há uma prioridade absoluta.
Por isso, em nossa incompreensão e incertezas diante desses elementos, o tempo pode nos parecer, como ao angustiado poeta argentino Jorge L. Borges (1899-1986), uma sucessão de instantes que nos escapa − um labirinto onde cada passo é também uma perda, uma “ilusão”.[25] No entanto, sabemos, que ele é implacável em sua caminhada e transitoriedade.[26] Mas, não nos esqueçamos; está sob a direção de Deus.
Quando estamos apressados aguardando algo, tudo parece demorado. Quando estou com tempo disponível, as distâncias ficam mais curtas. O relógio, em nossa mente, pode ser romanticamente domesticado, o que de fato não ocorre objetivamente.
Conforme a nossa base de avaliação comparativa circunstancial, posso dizer que algo é longe ou perto; rápido ou demorado. Já observaram como uma viagem de duas horas é longa a partir, digamos, da primeira hora de percurso? Já uma viagem de 8 horas, você nem sequer considera a primeira hora porque ainda faltam muitas outras.
E a refeição servida no restaurante? Faz diferença o tempo de espera quando você está com fome, sozinho e, sem celular (Talvez seja por isso que as pessoas “roteadas” tendem a pedir a senha do Wi-Fi antes do prato). A sua percepção é diferente se estiver tranquilo, sem muita fome e com uma boa prosa ou conversando no zap.
Da mesma forma, como temos uma dimensão mais imediatamente material da realidade, tendemos a circunscrevê-la a isso apenas. Assim procedendo, os propósitos de Deus podem nos parecer demasiadamente demorados − incrementados e fortalecidos pela nossa ansiedade material ou materialista − ainda que estejam perfeitamente sob o seu domínio e controle.
No entanto, apesar da subjetividade que permeia nossa percepção − limitada, fragmentada e muitas vezes distorcida − isso não altera a realidade objetiva de que Deus permanece soberano, dirigindo e sustentando todas as coisas. A nossa visão pode vacilar, mas o Senhor não perde o controle. Ele reina absoluto, mesmo quando não compreendemos os caminhos pelos quais Ele nos conduz.
Algumas consideraçõesDiante da grandeza do Ser de Deus e da complexidade da criação, somos convidados a viver com humildade, reverência e confiança. Não compreendemos plenamente os caminhos divinos, mas podemos descansar na certeza de que Deus se revela, age na história e conduz todas as coisas com propósito eterno.
Assim, a verdadeira felicidade não está em seguir nossos próprios caminhos, mas em alinhar nossa vida à vontade de Deus, como o justo do Salmo 1, que medita na Lei do Senhor e frutifica. Mesmo quando enfrentamos silêncio, demora ou disciplina, como Habacuque, somos chamados à perseverança na oração e à confiança na soberania divina.
Em tempos de incerteza, quando o tempo parece um labirinto e as circunstâncias nos confundem, devemos lembrar: tudo está sob o governo de Deus. Ele é o Senhor do tempo, dos meios e dos fins. Nossa resposta deve ser fé ativa, obediência perseverante e esperança fundamentada em Sua revelação.