Carrefour: assassinato e desengajamento moral corporativo
Sexta-feira, 20 de Novembro de 2020    11h26

Carrefour: assassinato e desengajamento moral corporativo

Fonte: Redação
Foto: Pascal Guyot/AFP
Em nota, empresa diz repudiar comportamentos violentos e discriminatórios

 

João Alberto Silveira Freitas, conhecido por seus amigos como Beto, de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour após uma discussão com uma funcionária. De acordo com o Estadão, um dos assassinos de Beto é supostamente um Polícia Militar temporário que atua na Brigada Militar do Rio Grande do Sul e estaria fazendo “bico” na empresa que presta serviço de segurança a rede de supermercados francesa[1]. Beto é mais um rosto que faz parte da escandalosa estatística da violência contra os negros do Brasil. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os negros são cerca de 56% da população brasileira, mas representam quase 75% dos mortos de maneira violenta no Brasil. São 79% das vítimas das intervenções policiais com resultados morte e são 65% dos policiais assassinados.

Não é a primeira vez que a empresa francesa se envolve em situações assim. Em 2001, ela foi acusada de usar traficantes para “punir” pessoas que praticavam furto na sua loja de Jacarepaguá no Rio de Janeiro[2]. Em 2018, um cachorro foi espancado até a morte em um supermercado da marca gerando comoção social[3]. E neste ano no Recife, após a morte de um trabalhador dentro do Carrefour, o corpo do trabalhador foi coberto com guarda sol verde e a loja seguiu funcionando[4]. Quando casos assim acontecem, as empresas buscam rapidamente desengajar-se moralmente do que aconteceu. Artigo científico da Profa. Cintia Medeiros da Universidade Federal de Uberlândia e meu discute as formas deste desengajamento acontecer[5].  Em situações assim, as empresas dizem “nós estamos fazendo o que deve ser feito”, “nós não colocamos a sociedade em risco”; e a “culpa não é nossa”. Ou seja, a empresa busca fugir de suas responsabilidades. É exatamente o que a nota do Carrefour faz ao afirmar que “adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos”, irá “fechar a loja” e “romper o contato com a empresa de segurança” e “desligará o responsável pela loja”. Esta atitude deixa de lado a responsabilidade social corporativa da empresa mudar suas práticas cotidianas e sua forma de operar.

Por exemplo, a terceirização das empresas de segurança gera redução de custos e de responsabilidades. Empresas de segurança possuem relações com as polícias e possuem policiais empregados. É sabido que policiais no Brasil precisam fazer “bicos” para poder sustentar suas famílias e as empresas usam esta mão de obra mal remunerada para ter privilégios em suas operações cotidianas. O policial empregado consegue pedir apoio mais rapidamente e tente a contar com a solidariedade dos colegas de rua no momento do problema. A terceirização faz com que a responsabilidade da contratação do policial não seja da multinacional. Ou seja, a grande empresa se aproveita dos problemas do Estado para ter mais segurança. Além disso, as empresas de segurança que estão em um mercado altamente competitivo investem pouco na formação e treinamento de seus funcionários bem como na remuneração dos mesmos. Vale ainda notar que as empresas de segurança tendem a ser pouco fiscalizadas. Vale frisas que há vasta literatura que diz que a responsabilidade social corporativa muitas vezes é um conjunto de frases bonitas que mudam pouco a prática das empresas. No caso em questão, tenta-se tratar como se fosse um problema de indivíduos e não de uma lógica corporativa que se beneficia da exclusão social, do racismo estrutural e dos graves problemas de nosso Estado.

Por fim, resta o horror que nós temos de encontrar pedintes nos supermercados e nas lojas. Uma sociedade estruturalmente e institucionalmente racista como a nossa, além de ser pobre-fóbica, faz com que supermercados tenham segurança não apenas para proteger as lojas do crime, mas sobretudo para espantar os pedintes e pobres não consumidores. Neste dia da consciência negra, o assassinato brutal e cruel de Beto nos lembra que as nossas instituições precisam de mudanças profundas para deixarmos de ser um país racista, assassino e cruel.

Referências

[1] https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,homem-e-espancado-e-morto-por-segurancas-do-carrefour-em-porto-alegre,70003521636

[2] https://istoe.com.br/40310_RELACOES+PROMISCUAS/

[3] https://exame.com/marketing/morte-de-cachorro-a-pauladas-em-loja-do-carrefour-gera-onda-de-protestos/

[4] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/08/19/representante-de-vendas-morre-em-supermercado-no-recife-e-corpo-e-coberto-por-guarda-sois.ghtml

[5] https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-65552018000100070&script=sci_abstract&tlng=pt

Rafael Alcadipani/Estadão

Rafael Alcadipani, é Professor Titular da FGV-EAESP e Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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