Golpe em nome da liberdade evidencia descaso histórico
Quinta-feira, 28 de Maio de 2020    22h43

Golpe em nome da liberdade evidencia descaso histórico

Fonte: Redação
Foto: AFP
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Permitir que notórios golpistas disputem o significado da palavra "liberdade" é sinal de inércia histórica

 

Entendendo Bolsonaro

[RESUMO] O bolsonarismo anuncia, com todas as letras, uma ruptura democrática no País. E o faz ciente do seu lugar na disputa semântica pela ideia de "liberdade". A própria existência desse embate evidencia como, incapazes de conter o germe em seu nascedouro, as forças democráticas concorreram para a sua própria falência.

* Igor Tadeu Camilo Rocha

Os inimigos imaginários e reais do bolsonarismo são bem delimitados e, de alguma maneira, dependem um do outro. Sem esses alvos fictícios que conferem coesão identitária e estruturam a narrativa bolsonarista, os inimigos reais ficam esvaziados. Deixam de ser inimigos, a rigor.

Mas quem são os inimigos reais? São as instituições republicanas, que formam a nossa errante democracia liberal. Atualmente, elas são aquilo que o bolsonarismo visa derrubar. Por um golpe clássico? Há dúvidas sobre se dispõe de força para tanto. Mas o bolsonarismo já tem feito isso há anos, normalizando o absurdo segundo as regras democráticas.

O bolsonarismo tornou-se algo que sintetiza a defesa de atos pedindo a volta do AI-5 (que, entre outras coisas, fechou o Congresso Nacional e institucionalizou a tortura como política de Estado) em nome da liberdade e da democracia. Sim, parece absurdo.

Mas qual é exatamente a liberdade evocada, por exemplo, pelos 300 de Brasília, dispostos a uma guerrilha armada em defesa de Jair Bolsonaro para "ucranizar" o Brasil? Qual liberdade de expressão determinados blogueiros bolsonaristas evocam para destruir reputações de adversários, inflamar sectários do bolsonarismo a atacar instituições democráticas, negar a ciência em nome das suas fantasias reacionárias, entre outros pontos?

Aponto aqui para duas direções igualmente terríveis à democracia brasileira. Elas, em conjunto, formam a rede que integra os inimigos imaginários e reais, contra os quais se ergue o bolsonarismo e o tornam disruptivo e ameaçador às instituições democráticas.

Essa "liberdade" de construção de inimigos imaginários serve para se criar as narrativas necessárias à construção das identidades do bolsonarismo. Seu moralismo precisa de espantalhos como a da suposta ideologia de gênero, assim como seu anticomunismo (que não precisa do comunismo para existir) precisa de outras construções imaginárias como a do Foro de São Paulo.

Os exemplos são vários, mas aqui importa é que eles, no conjunto, são a metanarrativa bolsonarista. São formadores de suas identidades históricas e políticas. Conferem sua coesão e produzem sua ideia de cidadania, como participantes de uma grande reação a "tudo isso que está aí".

No Espírito das Leis (1748), Montesquieu buscou sistematizar as leis que seriam mais adequadas conforme a Natureza dos governos. E, quanto às Repúblicas, a obra diz que elas são constituídas pela virtude de seus cidadãos, e dela decorrem as instituições. Instituições formadas a partir dessas virtudes de cidadania tendem a ser boas, no sentido de preservar a própria República e prover o bem comum de seus cidadãos. Sem essas virtudes republicanas, ou sua degeneração, o mesmo livro aponta para uma cidadania corroída, que também deturpa as instituições e abre o caminho a demagogos e tiranos que ameaçam a própria República, levando-a a seu fim.

E a ideia bolsonarista de cidadania é formada a partir dessa metanarrativa que mencionei acima. E é aí que chegamos aos inimigos não imaginários do bolsonarismo. As instituições, as instâncias de mediação de conhecimento e informações com a sociedade – como a imprensa e as universidades –, além dos contrapesos ao Poder Executivo, como o Supremo e Congresso.

O projeto político atual foi eleito dentro das regras da democracia, contra ela. O bolsonarismo seguiu, até que se prove o contrário, todas as regras permitidas dentro do jogo democrático. Porém, o ressignificou – não à maneira como Luciano Huck, por exemplo, esperava, creio eu.

As regras foram levadas até os limites e a busca por normalizar procedimentos, em algum momento, tidos como absurdos, foi e é constante pelo bolsonarismo. As teorias conspiratórias e fake news igualadas à imprensa ou universidades como fonte autorizada de veiculação de informações e conhecimento, fornecendo o substrato para amparar decisões no espaço público, são somente um exemplo disso.

Dentro disso, agora, vale ameaçar abertamente ministros do Supremo, congressistas, imprensa e adversários políticos. Tudo em nome de uma liberdade de defender aquilo que confere sentido e identidade ao bolsonarismo. De reafirmar seu projeto de presente e futuro. É uma construção racional de evocar e instrumentalizar a liberdade democrática a fim de defender e reafirmar privilégios, ódios e ressentimentos. Também, de evocá-la para legitimar a violência verbal e física aos inimigos de seu projeto de realidade, aquilo que os separa de sua sonhada sociedade autoritária, moralista, hierarquizada e violenta.

E os avisos foram dados. Talvez os apegos excessivos a formas e regras do exercício das liberdades dentro da democracia nos tenha impedido de ver que elas, assim como outros elementos norteadores da democracia como a razão, igualdade e solidariedade, sejam valores substantivos, dotados de conteúdos que devemos escolher aceitar ou não como constitutivos do nosso arranjo social.

Homenagear um torturador no Congresso em 2016 ter servido de capital político e não de motivo flagrante para Jair Bolsonaro ser processado e/ou preso diz muito sobre as nossas escolhas, aquelas que tornaram o bolsonarismo e sua linguagem e prática golpistas aceitáveis.

Por muito tempo, vimos isso como parte dos usos legítimos da liberdade, e, agora, toda a nossa inércia histórica converte-se numa anomia que não sabemos muito bem como enfrentar, muito menos resolver.

Evocando novamente Montesquieu, se as Repúblicas são sustentadas por instituições, que são formadas e conservadas pelas virtudes dos seus cidadãos, o Brasil falha na construção e disputa de significados históricos das suas. Permite de tempos em tempos ardis autoritários em nome da liberdade (para quem?), deixando suas instituições sempre frágeis como castelos das cartas diante de reacionarismos sempre latentes no seu tecido social.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

 

Fonte: Uol

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